(Conto inspirado em fatos reais.)
Eu
tenho um tio. O tio Fidel. Essa é a história do dia em que ele queria apenas
voltar para casa, mas resolveu fazer uma brincadeira no meio do caminho. Meu
tio não compreendia que brincadeiras nem sempre são bem-vindas em tempos como
aqueles. Era uma época sombria. Fria. Com as ameaças de uma guerra distante e o
terror de uma ditadura instalado nas proximidades.
Mas o meu tio Fidel sempre gostou de
brincar. Alguns diziam que ele fazia por provocação. Mas a verdade é que ele
parecia alheio aos acontecimentos do mundo. Meu tio também gostava muito de
contrariar. E só para contrariar o governo e brincar com o medo das pessoas,
resolveu ostentar seus pertences russos. Que, aliás, eram do Paraguai. Mas o
prazer que tio Fidel sentia estava no momento em que ele pronunciava a temível
palavra e observava a reação provocada nas outras pessoas.
Naquela tarde, tio Fidel saiu após o
almoço, como sempre, para conversar com os pescadores na praia da Boa Viagem.
Tomou uma cerveja e seguiu, como sempre, para a Cantareira, onde costumava
tomar uma Coca-Cola com o seu amigo Ernesto. Após o encontro, ele pretendia
subir a rua Fulgencio Batista, comprar quatro pães acabados de sair na padaria
da esquina, e voltar para casa, onde era esperado por tia Olga, que era a sua
mulher.
No entanto, os acontecimentos o
levaram também para outro lugar. Após acabar de beber a Coca-Cola, tio Fidel
lembrou-se que ainda não havia ostentado nenhum dos seus pertences naquela
tarde. Por isso, já na hora da despedida, aproximou-se um pouco mais de Ernesto
– mais do que era socialmente confortável para a amizade deles – e perguntou:
_ Está vendo esse relógio? – E
enquanto falava aproximou o relógio a uma distância de cinco centímetros do
nariz de Ernesto.
Tio Fidel estava tão ansioso para
ver a expressão na cara do amigo que não esperou a resposta e, por fim,
declarou, simulando um sussurro, que pôde ser ouvido por quem estava na outra
ponta do balcão:
_ É ruuuusso! – Assim mesmo,
esticando o “u” até onde o fôlego dos seus 59 anos permitia.
Mas Ernesto não reagiu como meu tio
esperava. Aliás, não reagiu de maneira nenhuma. (O que, como veremos mais à
frente, quase lhe custou a liberdade.) Apenas despediu-se com um “Até amanhã” e
seguiu na direção das barcas.
Tio Fidel, meio decepcionado,
obedeceu à rotina e foi à padaria, com os mesmos passos calmos que costumava
utilizar em todas as situações. Dezoito minutos depois, ao chegar em casa, tia Olga
abriu a porta. Ela parecia muito aflita. Meu tio logo percebeu que ela tinha
companhia. Sentados no sofá, estavam dois agentes da polícia, que informaram
que ele seria levado à delegacia para um interrogatório. O motivo: suspeitavam
que tio Fidel era um provável espião a serviço da URSS.
Meu tio Fidel, ainda sem entender
nada, entrou no carro da polícia e foi levado até à delegacia, no centro da
cidade. Ao ser encaminhado para a sala de interrogatórios, percebeu que lá
dentro já havia outra pessoa aguardando para também ser interrogada. Era
Ernesto.
Tio Fidel, ainda sem compreender,
tentou falar com o seu amigo, mas foi obrigado a calar-se. Em épocas sombrias
como aquela, esperam que estejamos sempre calados, mesmo em salas onde
deveríamos responder às perguntas feitas. Após quatro cansativas horas, os dois
foram liberados. Ernesto, por falta de provas. Tio Fidel, por falta de
paciência do delegado. Meu tio, coitado, ainda não compreendia o acontecido.
Mas aproveitou que estava no centro da cidade e foi à praça dos camelôs. Ele
queria procurar alguma matrioska paraguaia para assustar a tia Olga quando
chegasse em casa.
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